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Recordando o Golpe de 64 para evitar a ditadura

 


(Arte: Agência Brasil)


Há seis décadas, o Brasil testemunhava o golpe militar que destituiu o presidente João Goulart, inaugurando o mais longo período ditatorial na história republicana do país.


As repercussões do golpe e da ditadura de 21 anos, bem como todo o contexto interno e externo atravessado pelo Brasil ao longo dessas duas décadas e seus impactos na história nacional, ecoam até os dias atuais. Isso se torna evidente nos recentes acontecimentos envolvendo a relação entre militares de alta patente da reserva e da ativa com o governo de Jair Bolsonaro, além de sua tentativa de golpe de Estado.


As raízes do golpe estão profundamente entrelaçadas com a história brasileira, caracterizada pela concentração extrema de renda e riqueza nas mãos de uma ínfima, porém influente, elite dominante. Essa configuração remonta ao período colonial, ao sistema escravista e à dependência econômica do Brasil em relação aos centros colonizadores europeus. A história da República brasileira é permeada por essas origens, e o golpe de 1964 não foge a essa regra.


Neste artigo vou falar das causas mais imediatas, nas raízes que se desenvolveram, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Essas causas nos oferecem um panorama vívido das movimentações políticas que culminaram, em última instância, na ascensão ao poder das Forças Armadas em 1964, e nas alianças entre militares e civis nacionais, bem como entre esses e os Estados Unidos naquela época.


Como em todo golpe de Estado, além das motivações, existem as justificativas, a ideologia disseminada previamente para legitimá-lo. À época, e ainda hoje, defensores da ditadura militar (ou cívico-militar, como alguns preferem) propagaram uma ideia completamente falsa: os militares agiram para evitar um suposto golpe "esquerdista" do presidente Goulart e seus aliados "comunistas". De acordo com esses defensores, o país estava à beira de ser governado por uma "república sindicalista", como afirmavam os golpistas. Muito disso estava relacionado às "reformas de base" que João Goulart havia proposto ao Congresso. 


Outra narrativa, combinada com essa, sustentava a antiquada ideia de que era crucial combater a corrupção. Para efeito de comparação, recordemos as justificativas amplamente divulgadas no Brasil para o golpe de 2016 contra a presidente Dilma e o terreno fértil que levou à eleição de Bolsonaro em 2018.


É evidente que as justificativas para golpes geralmente são fundamentadas em objetivos e interesses diversos, envolvendo setores econômicos poderosos, tanto nacionais quanto estrangeiros, corporações e frações de classe que têm conflitos com o governo alvo do golpe. Mais uma vez, o impeachment da presidente Dilma, baseado nas inexistentes "pedaladas fiscais", ressoa na memória. E as justificativas para o público em geral servem para ocultar os verdadeiros objetivos. As justificativas são ideias para unificar um campo político, idealmente com algum apoio popular. Em 1964, a indústria do anticomunismo liderava com suas justificativas absurdas. Como costuma ser comumente.


É crucial esclarecer que o golpe de 1964 não surgiu naquele ano como uma suposta reação a um imaginário "golpe de esquerda" planejado pelo presidente Goulart. Na verdade, ele foi resultado de décadas de contradições na política brasileira e de uma significativa influência dos serviços diplomáticos e de inteligência dos Estados Unidos sobre o Brasil, especialmente durante a Guerra Fria, considerando a importância estratégica do nosso país no cenário geopolítico da época.


Desde a Revolução de 1930, o Brasil experimentou um intenso processo de desenvolvimento industrial concentrado principalmente no Sudeste, acompanhado pela formação de um extenso proletariado urbano, inicialmente beneficiado pelo arcabouço trabalhista estabelecido durante os governos de Getúlio Vargas.


A rápida industrialização e a expansão do mercado consumidor interno, particularmente nas grandes cidades, impulsionadas pela migração massiva do campo, foram fatores de crescimento para o capitalismo brasileiro. No entanto, também trouxeram consigo novas contradições e demandas por parte dos trabalhadores.


No final dos anos 1950 e início dos anos 1960, houve um vigoroso movimento reivindicatório dessas massas proletárias em busca de melhores condições de vida, salários mais dignos e maior participação política, juntamente com uma crescente demanda por reforma agrária, dada a persistente estrutura agrária herdada do período colonial. Esse movimento se manifestava por meio de mobilizações organizadas por sindicatos e centrais sindicais, o que gerava grande apreensão nas elites urbanas e rurais.


Vale ressaltar que o golpe não foi um evento isolado, mas sim o desdobramento de uma série de acontecimentos políticos e sociais que precederam essa ruptura. Ele foi articulado por setores reacionários do país, incluindo grandes empresários, internos e externos, e militares de alta patente, que por anos tentaram interromper o processo de desenvolvimento nacional liderado inicialmente por Getúlio Vargas e pelo campo político conhecido como nacional-desenvolvimentista.


Esse modelo de desenvolvimento, dentro dos limites do capitalismo, enfatizava a proteção social e os direitos trabalhistas, inspirado em certo grau pelo Estado de Bem-Estar Social em desenvolvimento na Europa, como contraponto ao socialismo soviético. No entanto, setores empresariais e militares alinhados com o liberalismo econômico e com a aliança geopolítica com os EUA após a Segunda Guerra Mundial se opunham firmemente a um Estado mais intervencionista e regulador da economia, assim como à expansão dos direitos sociais e trabalhistas, que exigiam uma redistribuição dos lucros do capital privado para o governo, na forma de impostos.


É importante destacar que, ao contrário do que muitos afirmam, não havia uma aliança sólida entre comunistas e nacional-desenvolvimentistas. Essa aliança era, na verdade, pontual e variava de acordo com as necessidades de cada lado, havendo momentos de cooperação e também de conflito, especialmente no movimento operário-sindical.


A existência de uma força política claramente comprometida com o socialismo e influente entre os trabalhadores e a intelectualidade intensificava o medo de mudanças políticas e sociais profundas por parte das elites, ao mesmo tempo em que fornecia um pretexto para a propaganda anticomunista. O fantasma do comunismo era um instrumento bruto, porém eficaz, para angariar apoio dos setores mais conservadores da sociedade e parte da classe média.


As semelhanças entre os eventos daquela época e os acontecimentos recentes em nossa história não são meras coincidências. No entanto, para uma compreensão completa do contexto, é fundamental retornarmos aos fatos da época.


Desde a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, com o envio da Força Expedicionária Brasileira por Getúlio Vargas em 1944, estabeleceu-se um vínculo significativo entre o comando das forças armadas, especialmente do Exército, e o comando das tropas estadunidenses na Itália, onde ocorreram as ações da FEB. O desdobramento mais evidente desse vínculo foi a criação da Escola Superior de Guerra em 1949, fundamentada na "Doutrina de Segurança Nacional", que, durante a Guerra Fria, promovia a "luta contra o comunismo" no Brasil, alinhada aos pressupostos da diplomacia dos Estados Unidos.


Após o término da Segunda Guerra, essa doutrina estabelecia que o inimigo da pátria residia internamente, ou seja, nas forças que buscavam transformações econômicas e sociais profundas para superar o atraso do país em diversos aspectos, ao mesmo tempo em que fortaleciam sua soberania. Os defensores do desenvolvimentismo nacional, fortemente associados ao governo de Getúlio Vargas, eram rotulados, por essa ideologia, como "comunistas", uma associação que carece de fundamentos sólidos, salvo em alianças pontuais. No entanto, qualquer oposição ao alinhamento automático entre o Brasil e os EUA era interpretada como "alinhamento à União Soviética", uma propaganda simplista. Nesse contexto bipolar da Guerra Fria, a ideologia disseminada sugeria uma suposta "esquerdização" do desenvolvimentismo nacional.


É relevante mencionar que, em 1945, o Exército brasileiro liderou um golpe de Estado contra o presidente Getúlio Vargas, justamente quando ele havia encerrado a ditadura do Estado Novo e iniciado uma guinada política, concedendo anistia aos presos políticos, especialmente aos militantes comunistas detidos desde 1935, incluindo Luiz Carlos Prestes.


Esse golpe, ocorrido em 29 de outubro, não apenas destituiu Getúlio da presidência, mas também impediu sua candidatura ao cargo, apoiada por Prestes e pelo Partido Comunista do Brasil, o que alimentou a narrativa da associação do varguismo ao comunismo. Isso o forçou a um acordo político para apoiar o ultraconservador marechal Eurico Gaspar Dutra na campanha presidencial.


As justificativas para esse golpe eram fracas, meramente simbólicas. No governo Dutra, a Guerra Fria atingiu o Brasil com força, resultando na cassação do registro eleitoral do PCB em 1947 e dos parlamentares comunistas em todo o país em 1948, o que levou o partido de volta à clandestinidade. O governo Dutra impôs uma ditadura severa, reprimindo violentamente o movimento sindical, os trabalhadores e os comunistas.


Os militares desempenharam um papel central na crise política que culminou no suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954. Eleito em 1950, Vargas tinha uma política voltada para a soberania nacional e a ampliação dos direitos sociais e trabalhistas, o que não estava alinhado aos interesses do grande capital americano e sua estratégia de submissão da América Latina, e do Brasil, aos seus interesses. A imprensa ligada aos interesses imperialistas e partidos ideologicamente "liberais", como a UDN, criaram um clima golpista, exigindo a renúncia de Vargas. Isso resultou em uma tentativa de golpe militar em 1954, que não teve êxito devido à reação popular.


Como desdobramento da grande crise política de 1954, a maioria dos eleitores optou pelo campo do nacional-desenvolvimentismo ao eleger Juscelino Kubitschek para o comando central do país. Antes mesmo de sua posse, as forças reacionárias, lideradas pela UDN, tentaram anular a eleição, e setores militares ligados a essas forças passaram a defender abertamente um golpe de Estado. Isso levou o Marechal Lott, de inclinação nacionalista, a deflagrar o famoso "golpe preventivo", mobilizando tropas e tanques leais para garantir a posse do presidente eleito.


Logo após a posse, em fevereiro de 1956, o país foi novamente abalado por agitação militar, com uma tentativa fracassada de oficiais da Aeronáutica de derrubar Juscelino, na malograda "Revolta de Jacareacanga", que durou 19 dias até ser suprimida por forças leais ao governo. Isso evidencia que setores militares há muito tempo buscavam minar a permanência no poder do bloco nacional-desenvolvimentista, utilizando o pretexto do "comunismo" como instrumento de agitação.


Esses setores voltaram à cena com força durante a crise política desencadeada pela renúncia do presidente Jânio Quadros em agosto de 1961. Os três ministros militares alinharam-se em um manifesto contra a posse de João Goulart, eleito vice-presidente de Jânio em 1960, efetivamente tentando um golpe de Estado. Essa tentativa foi parcialmente frustrada pela vigorosa atuação do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que liderou a Campanha da Legalidade, mobilizando forças políticas e militares em apoio à posse de Goulart.


O desfecho geral foi um breve período de parlamentarismo, imposto pelo Congresso para evitar um confronto armado entre golpistas e legalistas. Em 1963, em um plebiscito, João Goulart reassumiu plenamente os poderes presidenciais, com uma esmagadora vitória do presidencialismo, obtendo mais de 80% dos votos. Essa expressiva vitória basicamente consolidou a necessidade de depor o presidente.


A tradição golpista enraizada em alguns setores das Forças Armadas, especialmente no Exército, já estava estabelecida nos anos que precederam o golpe de 1964. No entanto, é crucial destacar que não havia uma única orientação política dentro das Forças. Apesar de estarem sujeitos a um código disciplinar e de serem submetidos a uma forte doutrinação ideológica em defesa da hierarquia, não havia um comando unificado e monolítico. Existiam diferentes grupos entre os oficiais de alta e média patente, alguns alinhados ao pensamento liberal pró-EUA, outros ligados ao nacional-desenvolvimentismo getulista, e ainda outros simpatizantes do Partido Comunista.


A ascensão dos grupos ligados ao grande capital privado pró-imperialista no golpe de 1964 reconfigurou significativamente esse cenário, à custa de um verdadeiro purga das Forças Armadas - e das forças de segurança estaduais - das lideranças e grupos que não apoiavam o golpe e a linha política de seus líderes. Poucas pessoas têm conhecimento, mas cerca de 6 mil militares, incluindo generais, coronéis, oficiais de patente inferior e soldados, foram severamente afetados pelo golpe de 1964, sofrendo cassações, aposentadorias forçadas, expulsões, prisões, torturas e até mesmo mortes. Com o golpe, encerrou-se um capítulo da história brasileira e iniciou-se outro. No entanto, como em toda transição de épocas, o novo período inaugurado pela ditadura militar carregava consigo elementos importantes do período anterior, especialmente no que diz respeito ao fortalecimento dos aparatos estatais, particularmente do governo central do país. No entanto, esse assunto merece uma discussão mais aprofundada em artigos posteriores.


É fundamental compreender as causas fundamentais que levaram o país à ditadura de 1964 para evitar cair em uma série de equívocos, especialmente interpretações ingênuas sobre a necessidade do golpe para "combater a corrupção", "impedir um golpe comunista" e "salvar a democracia". Pois esses equívocos continuam sendo repetidos incessantemente ao longo do tempo. Como os nazistas costumavam dizer, a mentira repetida à exaustão se torna verdade - para aqueles que não conhecem a história.


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